segunda-feira, 3 de abril de 2017

ANJO

Quando descobri que tinha cancro, pensei que já não havia mal no mundo que se abatesse sobre mim. Eu já tinha palmilhado o mundo de lés-a-lés, à procura do meu filho. Fui de déu-em-déu, dormi embalada pelo vento frio da noite, em bancos carcomidos, nos braços dos moribundos. A dúvida sempre a serrazinar. Mas eu sempre tive a esperança que o iria encontrar. Quis ter uma alma nobre e perdoar a minha mãe, o que aconteceu foi um infeliz episódio. Culpei-a por não o vigiar em condições e queria que ela sofresse, por sentir-se culpada e por nunca me ter salvado do meu casamento. O meu ex-marido, não passou incólume, mas mesmo que ele vá para o Inferno, nada apaga os anos que vivi neste tormento, vítima de violência doméstica. Ele sempre soube manter as aparências, mormente em frente dos filhos, eu era sempre a culpada. Queria que eu acreditasse que eu merecia as tareias que levava. Fazia-me sentir um ser inferior. Quase acreditei, tão compulsivamente eram os abusos psicológicos. No dia em que a máscara caiu, o descontrolo foi total, a minha filha, grávida, pela primeira vez viu o carácter iracundo do pai, a infligir-me pancada. Não quis acreditar, o pai, o maravilhoso pai, tão afável a bater na mãe. Meteu-se à frente, para me salvar. Ela que sempre esteve a favor do pai em tudo, em meu detrimento. Foi quando ele, se transformou e deu-lhe tamanho pontapé na barriga, que eu não sei como a minha filha não perdeu o bebé. Nesse momento o meu instinto de mãe falou mais alto, não, basta, acabou de vez, estava disposta a tudo, só via sangue nas paredes, uma casa em ruínas, a rola Piaf, esbravejava as asas na gaiola, perdia as penas com a raiva, como se as arrancasse com o bico. Que cenário formidoloso era aquele? Acolhi a minha filha no meu ventre e chamei a polícia. Acabou-se. Agora que estou a reconstruir-me como mulher, tenho uma nova luta pela frente. A luta contra este cancro de mama. Estou sozinha, mas estou em paz! Aliás eu nunca estou sozinha, tenho a Piaf, tenho o olhar carinhoso da minha mãe, tenho a lembrança do meu filho e tenho a Ele. Talvez em breve, vá ter com Ele, não sei. Mas sei que Deus olha por mim e dá-me força para enfrentar os tratamentos e ter esperança que um dia irei abraçar o meu filho roubado. Gostava que a minha história fosse diferente, gostava de vos contar como fui feliz a fazer o enxoval, como amei os meus filhos, a guerreira que sou… Se não conseguir encontrar o meu filho, ao menos quero deixar o meu testemunho, para que mulher nenhuma passe pelo que eu passei. Reitero o amor enobrece, respeita, não agride, nem humilha. O amor liberta. Por amor a mim própria eu libertei-me, ganhei asas, estou a aprender a voar. Não há amor maior no mundo que de uma mãe pelos filhos, por eles, por mim, eu continuo a minha jornada, na esperança de vencer mais esta batalha… Até sempre, Maria Rita, que o amor esteja entre nós!
Por Tiago Seixas, inspirado em "Os Pássaros também choram"

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