sábado, 18 de março de 2017

Reflexos

Olhei-me ao espelho, acordei Tiago. Fechei os olhos e bocejei com boçalidade. Não sei que horas eram, nem que dia, nem que estação. Quando abri paulatinamente as pestanas, assustei-me com o reflexo que vi. Tinha os lábios vermelhos contornados com um lápis preto e um sorriso acutilante, manobrava a minha boca como um títere "voltei para me vingar". Era Regina! Vi as faces cravadas de batom de muitas mulheres e tresandava a suor, de quem esteve toda a noite a fornicar, era Diogo! Tinha a pele, as mãos todas encarquilhadas, esperava por ele com sofreguidão, era Dona Leonilde a mussitar "perdoa-me Bruno, meu neto". Pelas comissuras dos lábios escorria sangue e a dor da perda de um filho, naquele momento fui Rita, vítima de violência doméstica. Nas minhas costas rebentaram asas, como nos meus dedos rosas, em que os espinhos me furavam a pele e as minhas lágrimas eram correntes de um rio a céu aberto. Evolei no ar, nas asas de um anjo, numa sentida homenagem, à minha madrinha, que o cancro roubou a vida mas nunca roubou o nosso amor. Escutei baixinho o ciciar da oração da minha avó. Este livro, sou eu e eu sou o somatório destas personagens ímpares, complexas, rebuscadas num enredo tragicómico, mas de grande profundidade e beleza. Dormi com elas, embalei-as, com desvelo e com orgulho entrego-as a vós, tal como o pai que leva a filha ao altar. Estou nu em palavras! Tiago Seixas

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